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Sementeira e a leveza de um poético e brincante teatro infantil

"A estética e as opções por elementos como brinquedos e brincadeiras nos coloca de maneira suave e sem didatismos a importância de testarmos a nossa capacidade de mantermos contato com o externo sem o intermédio de meios tecnológicos. "

Uma sinergia aconteceu no Sítio Cultural Alsácia(Ribeirão Pires) durante o friozinho desse junho de 2016. O espaço, que ainda transita pelos seus primeiros dois anos de plantio, recebeu um desses grandes pequenos acontecimentos: o espetáculo “Sementeira”, uma junção do Coletivo Garagem (Ribeirão Pires) e do coletivo Ponto de Fiandeiras (Santo André). E parece que uma semente realmente foi plantada por ali.

A estética e as opções por elementos como brinquedos e brincadeiras nos coloca de maneira suave e sem didatismos a importância de testarmos a nossa capacidade de mantermos contato com o externo sem o intermédio de meios tecnológicos. Logo no início do espetáculo, um jogo vivaz relembra-nos que nosso corpo humano tende a produzir através de atos inatos: sons, movimentos e sensações. Nos é dado a chave central da história quando um fio elétrico se rompe e os narradores anunciam, sem grandes alardes, que aquelas histórias transcorrem em um espaço/tempo onde não haverá luz elétrica e logo assim não haverá televisão, computadores, celulares e as pessoas irão parar e se ouvir. A partir daí, assistimos um desenrolar poético sobre a constituição de um sujeito a partir de suas memórias de infância produzidas pelas experiências do encontro sem a mediação das tecnologias. E não só a constituição de um sujeito e sim de vários sujeitos. Pois são muitos os episódios de infância que geram empatia na plateia (que sorri e mareja os olhos) nos trazendo um híbrido movimento de sensações capaz de transitar entre as memórias boas e ruins que colhemos durante nossas infâncias.

O que vemos na direção do espetáculo não é um objetivo intencional que caminha a fábula rumo a alguma moral do mundo. Em seguida esse mesmo brinquedo nos leva ao ato de brincar com alguém, de fazer amigos. E por fim, o brincar ganha regras espontâneas e torna-se o jogo vivo. Mas esse jogo logo se dilui e vira fábula. Porque em se tratando de criança, alguém pode não avisar que saiu da brincadeira de esconde-esconde e deixar o amiguinho feito bobo lhe procurando por horas. Não seria assim tão parecido com o jogo da vida? Ou nunca alguém lhe abandonou no jogo da vida? Quantas vezes no jogo de adultos não procuramos por quem nem se quer se escondeu ne nós?

Procuras aparentemente superficiais ganham profundidade ao evocar imagens como a de um caminhão de mudança indo e levando o amiguinho que nunca mais veremos. Ou ainda a de uma criança que, após sofrer injustiças na escola e ser impedida de participar de uma festa por não ter o dinheiro da fantasia, tenta lidar com a consequência do rancor cuspindo nos caderninhos dos amiguinhos. Mesmo que de maneira equivocada, alguém diz que o ódio é também um sentimento a ser sentido e lidar com os sentimentos passa a ser a grande questão que fica aos presentes desse efêmero encontro de uma manhã de domingo. A grande questão que permeia as oito cenas do espetáculo são os movimentos em torno dos diversos sentidos de um ser humano: do paladar ao medo, do ódio ao amor. Cenas que são quadros que, com a mesma facilidade, se armam e se desarmam diante de nossos olhos sem nos causar estranhezas estéticas. Histórias fragmentadas que não falam nostalgicamente de ciclos e experiências e, sim, colocam o lugar do sentir mais no lugar imaginário e menos no lugar das ações, trazendo para nossas crianças a reflexão de que as ações são mediadas por longos e longos pensamentos. Logo assim: está liberado sentir ódio, desde que suas ações não se movam pelo ódio. Essa experiência do ódio pode ser vivida e extravasada em outra fábula: talvez na divertida cena em um ator é um Samurai e picota um grande dragão imaginário. É realmente um espaço lúdico perfeito para extravasarmos o ódio. Foi nesse momento em que o meu lado adulto pensou em se matricular em alguma luta que tenha um saco de pancadas envolvido em sua técnica.

Não podemos deixar passar desapercebido a construção desses enérgicos atores/narradores. Em cada fala dita, em cada movimento escolhido, percebe-se a seriedade e o respeito que esses atores tomam pelos temas da infância e pelo próprio teatro. Sem o corpo denso e tão treinado desses excelentes coletivos, esse encanto de encontro e essas tantas proposições não seriam possíveis de serem transmitidas. Nos despedimos por aqui, desejando que a carroça imaginária desses sensíveis e inteligentes artistas aportem por todos os lugares e pessoas que precisem enrijecer o músculo da imaginação.


William Costa Lima é pedagogo formado pela Universidade de São Paulo. Desde 2005 é diretor, dramaturgo e formador de artistas no Coletivo Pequeno Teatro de Torneado. É curador e cocriador do Sítio Cultural Alsácia (Ribeirão Pires).


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